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segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

[política] Fuga da fome: como a chegada de 40 mil venezuelanos transformou Boa Vista

Nas contas da prefeitura, imigrantes representam 10% da população da cidade. O reflexo se vê nas ruas: praças ocupadas, abrigos lotados e casas com até 31 moradores. Fluxo migratório começou em 2015, bateu recordes em 2017 e está aumentando em 2018.

Já é noite quando uma multidão de venezuelanos faz uma enorme fila para receber um pão e um copo de leite na praça Simón Bolivar, em Boa Vista. Famintos, eles devoram o alimento doado e depois se deitam no chão para dormir mais uma vez ao relento.

“A vida nas ruas do Brasil ainda é melhor do que continuar na Venezuela, porque aqui tem comida”, diz Luiz Gonzalez, de 36 anos, que chegou ao Brasil há menos de uma semana. Sem dinheiro, assim como muitos outros, ele dorme no chão da praça ocupada por mais de 300 venezuelanos recém-chegados a Roraima.

Essa cena tem se tornado cotidiana na cidade que recebe um número crescente de imigrantes. Já são 40 mil, segundo as contas da Prefeitura de Boa Vista, o que equivale a mais de 10% dos cerca de 330 mil habitantes da capital do estado com menor índice populacional do Brasil.

Os venezuelanos que buscam refúgio em Roraima fogem, principalmente, da fome. Mas não é só isso, eles também querem escapar da severa escassez de remédios, da instabilidade política e de uma inflação galopante de 700% na Venezuela, que corrói a moeda e faz com que cada vez mais pessoas busquem comida no lixo.

A instabilidade política também preocupa. O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, se declarou candidato à reeleição, o que rendeu críticas da comunidade internacional. A Assembleia Nacional Constituinte, ligada a Maduro, decidiu antecipar o pleito, que seria no final de 2018, para antes de 30 de abril. Além disso, em uma decisão que agravou ainda mais a crise, o Tribunal Superior de Justiça recusou o registro de uma chapa que reúne vários partidos de oposição, deixando o caminho livre para a reeleição do presidente.

Venezuelanos fogem da fome e buscam oportunidades de trabalho em Roraima

De 1º a 25 de janeiro, 8 mil imigrantes entraram pela fronteira terrestre de Pacaraima, município vizinho à cidade venezuelana de Santa Elena de Uairén. No mesmo período, foram 5.952 fazendo o caminho de volta para o país natal, gerando um saldo que pode ser de 2 mil venezuelanos a mais em Roraima. Não é possível afirmar com precisão porque uma mesma pessoa pode ter entrado ou saído do país várias vezes.

Mesmo que não sejam precisos, os dados estimam uma realidade inegável. O impacto da imigração é notável por todos os lados. Nas ruas, português e espanhol se misturam e o 'portunhol' se populariza.

Por toda a cidade, há semáforos lotados de venezuelanos segurando placas em que pedem emprego. Outros estão nas portas dos supermercados em busca de comida e milhares dormem nas ruas, principalmente em praças. Os abrigos abertos pelo governo estão superlotados há meses e até 31 imigrantes vivem sob o mesmo teto em casas alugadas.

Na fuga da fome, o fluxo é desordenado e a imigração ocorre até a pé. Há venezuelanos que, sem dinheiro algum para custear passagens de vinda para o Brasil, decidem no auge do desespero caminhar e contar com a sorte de conseguir carona para percorrer os 218 km da BR-174 que separam Pacaraima e Boa Vista.

Imigrantes carregam malas e caminham pela BR-174, que liga Brasil e Venezuela (Foto: Emily Costa/G1 RR/Arquivo)

Esse foi o caso do jornalista Leonardo Cordova, de 28 anos. Ele convivia diariamente com a fome na casa onde morava em Cumaná, cidade costeira no estado de Sucre, Nordeste da Venezuela. No final de 2017, ele concluiu que tinha que ir embora do país.

"Eu não tinha dinheiro para nada e estava esperando uma bolsa de comida que o governo iria me vender de forma irregular. Estava cansado de viver nessa situação, e pensando em sair da Venezuela, mas não tinha recursos para isso. Finalmente, a comida não chegou e fiquei realmente desesperado. Foi aí que decidi ir embora, peguei o pouco dinheiro que tinha e vim para o Brasil".

O jornalista enfrentou um percurso de mais de 1,2 mil km viajando de carona, de ônibus e até mesmo a pé. Foi a fuga da escassez de comida, de remédios e do medo de morrer de fome.

"Viver na Venezuela é como um pesadelo. Você não tem esperança para o futuro, porque a luta diária é pela comida, pela sobrevivência. Você só consegue pensar em não morrer."

A decisão de vir a pé para o Brasil é nova, mas o fluxo de estrangeiros fugindo da fome começou há cerca de três anos. A Polícia Federal tem recebido pedidos de refúgio de venezuelanos em Roraima desde 2015. Naquele ano foram 280 solicitações, e 2.312 em 2016.

O recorde foi em 2017, com 17.130 pedidos. Desses, nenhum foi concedido pelo Comitê Nacional para Refugiados (Conare), órgão subordiando ao Ministério da Justiça.

Os venezuelanos não são considerados refugiados porque o refúgio é concedido àqueles que fogem de perseguições políticas, étnicas e religiosas. No caso dos venezuelanos, a fuga tem motivação econômica. Eles pedem o visto de refúgio porque, mesmo tendo apenas a solicitação em mãos, já podem trabalhar legalmente no país.

Cidades de Roraima recebem milhares de venezuelanos (Foto: Infografia: Alexandre Mauro/G1)

Neste ano, os números já chamam atenção: até a primeira quinzena de janeiro foram 640 pedidos de refúgio feitos, e outras centenas agendados, segundo a Polícia Federal. Cerca de 450 venezuelanos são atendidos por dia na unidade da PF na capital. A maioria são jovens do sexo masculino com bom nível de escolaridade e que, por isso, querem se regularizar no país para poder trabalhar.

Além do refúgio, os estrangeiros agora também pedem a chamada residência temporária. Esse modo de ingresso passou a ser gratuito em agosto de 2017. De lá até dezembro, foram 3.350 pedidos de venezuelanos.
Centenas de migrantes recém-chegados a Roraima está abrigados em uma praça na capital (Foto: Inaê Brandão/G1 RR)

Para Gustavo da Frota Simões, pesquisador e professor da Universidade Federal de Roraima (UFRR), a imigração tem seguido uma crescente, e o termômetro disso são as multidões, que de segunda a sexta-feira lotam a Superintendência da Polícia Federal em Boa Vista. Há quem espere quase um dia inteiro na fila e até durma na rua para se regularizar no país.

"O fluxo de imigrantes, sem sombra de dúvidas, está aumentando. Mas não é possível fazer previsões para o futuro, porque a vinda deles para o Brasil está fortemente relacionada à situação política da Venezuela."

A imigração impacta ainda os serviços de saúde e educação, que estão sobrecarregados, segundo as autoridades locais. Dados da Secretaria de Saúde de Roraima apontam que, em 2014, 760 venezuelanos foram atendidos na rede pública de saúde. Três anos depois esse número saltou para 15.055. Na única maternidade do estado, foram mais de 340 partos de mulheres venezuelanas em 2017.

Jorge Figueroa, de 40 anos, pede dinheiro em semáforos cinco vezes por semana. Ele mora em Boa Vista com os três filhos pequenos, mas não consegue emprego fixo (Foto: Inaê Brandão/G1 RR)

O número de imigrantes que estão em Boa Vista também é refletido nas escolas da capital. A prefeitura diz que, de 2015 a 2017, o número de crianças venezuelanas matriculadas em escolas da rede municipal de ensino cresceu 1.064%. Além disso, só no ano passado, quase 300 famílias venezuelanas receberam o auxílio Bolsa Família na cidade (equivalente a 1% dos 24 mil beneficiários do programa em Boa Vista).

Fugindo da fome a pé

Muitos imigrantes têm dinheiro para sair do país natal, mas não para pagar passagens de ônibus ou táxi para viajar de Pacaraima a Boa Vista (entre R$ 30 e R$ 50). Assim, eles se veem obrigados percorrer a estrada a pé ou pedir carona, levando apenas o que conseguem carregar nos braços.

Carol Parrare, de 36 anos, saiu de Pacaraima com outros sete familiares na madrugada de uma segunda-feira e chegou a Boa Vista na quarta. Na viagem, que levou dois dias e uma noite, caminhou por vários trechos e pediu carona, comida e água.

Venezuelana mostra os pés marcados pelo sol após dois dias viajando a pé e de carona, entre Boa Vista e Pacaraima (Foto: Inaê Brandão/G1 RR)

Ela conta que não sabia a distância exata entre as duas cidades e se surpreendeu com o longo caminho que teve de percorrer. Na estrada, a BR-174, encontrou vários imigrantes fazendo o mesmo trajeto.

"Pensava que era mais perto, muito mais. Vimos várias pessoas caminhando pela estrada, nos encontrávamos, depois nos dispersávamos. Eram famílias como nós".

Na Venezuela, Carol Parrera morava em Maturín e trabalhava como secretária em uma escola, mas mesmo com o trabalho fixo não conseguiu mais se manter no país. "A situação econômica na Venezuela é sumariamente ruim. Às vezes ficávamos dias sem comer, tremendo de fome, sem dinheiro que alcance o preço da comida."

'Território venezuelano': a vida na praça

Em Boa Vista há três abrigos para imigrantes. Dois estão superlotados e, juntos, todos têm capacidade para no máximo 2 mil pessoas. Também há milhares de venezuelanos em situação de rua e uma parcela muito maior de imigrantes dividindo aluguéis.

Nas ruas, um dos principais pontos de aglomeração dos venezuelanos é uma praça na zona Sul da capital. O local abriga hoje pelo menos 300 pessoas e carrega o nome de Simón Bolívar - líder militar que lutou pela libertação da América Latina do domínio espanhol.

A praça fica na margem esquerda da Avenida Venezuela, trecho urbano da BR-174, a mesma que liga o Brasil ao país vizinho. No local, há um busto de Simon Bolívar, que os imigrantes dizem ser fonte de proteção - e orgulho - para todos que ali vivem.

Na praça Simón Bolivar, imigrantes se sentem protegidos: 'aqui é como se fosse o nosso território venezuelano' (Foto: Inaê Brandão/G1 RR)

"Para nós, Simon Bolívar representa liberdade, igualdade social. [...] hoje estamos aqui refugiados na praça. Ela é como se fosse o nosso território venezuelano aqui no Brasil, sentimos que podemos estar nela porque ele também está e nos protege", diz Kelly Gomez, de 29 anos, formada em administração e recém-chegada ao país.

Quem olha de longe a multidão de venezuelanos abrigados na praça não imagina que ali tem gente que tinha casa própria, carro e uma vida estável na Venezuela. Hoje, quem dorme sob o chão duro e se alimenta do que ganha diz que tem saudade de casa e da família que ficou para trás. Mesmo assim, são unânimes: não querem voltar para a terra natal tão cedo.

"Minha casa na Venezuela tem ar condicionado", relembra Luiz Gonzalez, de 36 anos, que saiu da cidade de Maturín, no estado de Monagas, Leste do país. Ele deixou a mulher e os dois filhos pequenos e partiu com a missão de conseguir dinheiro para também trazê-los para o Brasil, mas não tem conseguido trabalho. "Já há muitos venezuelanos aqui em Boa Vista", desabafa.
Vivendo na praça Simón Bolívar, Luiz Gonzalez (à direita) e Ruy Suarez não querem voltar a morar na Venezuela (Foto: Inaê Brandão/G1 RR)

No país natal, Gonzalez era distribuidor de laticínios. Porém, a crise econômica, a hiperinflação e a instabilidade política do país levaram junto o seu trabalho. "Eu entregava leite, queijo e iogurte em comércios, mas na Venezuela não se consegue mais mercadoria. Eu estava trabalhando uma vez ao mês e ganhando tão pouco que não dava para viver."

Assim como ele, os cerca de 300 venezuelanos que vivem na Simón Bolívar e em muitas outras praças da cidade - a prefeitura diz que todas as 53 praças da cidade em algum momento do dia ou da noite ficam ocupadas por venezuelanos - são unânimes em dizer porque escolheram ficar na rua em vez de ir para o abrigo do ginásio Tancredo Neves, criado em novembro do ano passado para receber imigrantes não-índios e em situação de rua na cidade.

“Nos falaram que no abrigo é muito perigoso, não tem segurança, não dá para confiar. Chegamos a ir até lá, mas e vimos que é bem perigoso arriscado. Por isso, mesmo vivendo dessa forma e até dormindo no chã preferimos ficar aqui. Nos sentimos seguros na praça”, conta o engenheiro José Leal, de 25 anos.

Abrigos lotados e vida em comunidade

Em Boa Vista há três abrigos para imigrantes venezuelanos. Dois deles são antigos ginásios que foram abertos pelo governo do estado para receber os estrangeiros. Ambos são mantidos por parcerias com ONGs e igrejas e oferecem comida de graça para os imigrantes.

O primeiro abrigo a ser aberto em Boa Vista - ou "refúgio", como chamam os venezuelanos -, ainda em 2016, fica no bairro Pintolândia, na periferia da cidade. Antes, ele recebia índios e não-índios, mas hoje só tem vagas para indígenas - das etnias warao, pemons e eñapa em sua maioria. Ao todo, há atualmente 453 pessoas vivendo no local onde só deveriam estar 362, no máximo.
Abrigo para índios venezuelanos está lotado e pode parar de receber novos imigrantes em breve (Foto: Inaê Brandão/G1 RR)

"O abrigo não está superlotado, mas está perto disso. Acredito que logo vai chegar o dia em que não iremos mais poder receber ninguém aqui", afirma a coordenadora do Abrigo Provisório ao Imigrante Venezuelano, Sandra Palomino.

O outro abrigo na capital recebe venezuelanos não-índigenas e fica no bairro Tancredo Neves, também na periferia. Ele foi aberto em outubro de 2017 quando um grupo de 380 venezuelanos que morava em um acampamento ao entorno da rodoviária de Boa Vista foi retirado com uso de força policial e levado para o novo endereço.

Ginásio improvisado como abrigo tem 'favela' na parte externa (Foto: Inaê Brandão/G1 RR)

A Defesa Civil de Roraima, que é responsável por esse abrigo, diz que há 495 pessoas vivendo no local, mas o número, segundo os moradores, é muito maior. Uma venezuelana que faz o controle de entrada de novos habitantes acredita que já sejam mais de mil pessoas vivendo dentro e fora do ginásio - numa espécie de favela.

O abrigo está visivelmente superlotado e em condições precárias. Do lado de fora do ginásio há dezenas morando em barracos construídos com lonas, tecidos e restos de madeira numa espécie de gueto. Lá existem até pequenos empreendimentos improvisados para a venda de bagatelas como isqueiros, cigarros, gel de cabelo, e oferta de serviços como o de barbeiro, conserto de sapatos e lavagem de roupas.

Conflitos e doenças são comuns por lá, e o clima é quase sempre de tensão. Moradores relatam uma rotina de insegurança e medo principalmente à noite, quando a maior parte dos imigrantes volta depois de passar o dia atrás de trabalho e de comida. Alguns relatam que lá dentro há tráfico de entorpecentes, consumo de drogas, álcool e até prostituição.

Na semana passada, a Polícia Militar fez uma operação no local para encontrar quem havia invadido a cozinha e furtado 11 frangos doados para refeições coletivas. Nas buscas, cães farejadores acharam vestígios de drogas e dois facões escondidos.

Na pequena favela que se formou no abrigo, um barraco improvisado e frágil chama a atenção. Ele é o lar de dez pessoas da mesma família. É chocante. Há mulheres, homens e crianças vivendo espremidas no espaço que tem dois cômodos - que servem como quartos. Logo na entrada, uma bandeira da Venezuela relembra de onde todos vieram.

"Dez pessoas vivem aqui. Nós construímos a casa com material que pedimos", conta Katiuska Ramos, de 43 anos. Ela vive no local com o marido e quatro dos 12 filhos que tem.

"À noite não dormimos como se deve, porque temos medo. Aqui de dentro da nossa casa já furtaram comida, colchões, leite e fraldas."

Apesar do cenário de miséria, a intensa movimentação de pessoas no abrigo tem virado fonte de renda para alguns imigrantes. Leonardo Rivas, de 26 anos, por exemplo, improvisou uma barbearia onde atende cerca de dez pessoas por dia. "Meus clientes são venezuelanos e brasileiros", diz.

Ingrid Carvajal, de 32 anos, também achou uma maneira de ganhar dinheiro sem precisar sair do abrigo. Ela lava roupas dos moradores e cobra R$ 1 real por peça. O dinheiro que ganha é para garantir a sobrevivência dela e do filho de 16 anos e também para ajudar a mãe e a irmã, diagnosticada com câncer, que ainda moram na Venezuela.

"Lavo as roupas ajoelhada no chão do banheiro por cerca de quatro ou cinco horas por dia. Com esse trabalho, ganho R$ 30 por semana", diz, mostrando os joelhos machucados.

Já superlotado, o abrigo recebe entre 50 e 100 novos moradores por dia, segundo o relato de quem vive lá dentro há mais tempo. "Eu fazia o controle de quem morava aqui, mas acabei parando. A vida no abrigo é difícil, são muitas mentes diferentes. Irei me mudar para viver de aluguel nos próximos dias. Não aguento mais ficar aqui", descreve Silmara Monteiro, de 52 anos.

O terceiro abrigo da capital é bastante diferente dos demais. Aberto em dezembro e chamado de Centro de Acolhimento da Fraternidade Sem Fronteiras, ele é mantido pela ONG Fraternidade Sem Fronteiras e se estabelece num princípio: a vida em comunidade.

Localizado também na periferia, o centro hoje tem cerca de 145 moradores, mas tem capacidade para receber até o dobro de pessoas. A coordenadora do local, Alba Gonzalez, de 27 anos, explica que famílias, idosos, mulheres e crianças têm prioridade para serem acolhidos por lá.

"O Centro de Acolhimento foi construído por venezuelanos, para venezuelanos, e é gerido por venezuelanos. Eu acho que esse é o melhor jeito de ser, porque não somos meramente um abrigo, somos uma comunidade de venezuelanos dentro de Boa Vista. Aqui prevalece a nossa cultura e o trabalho conjunto."

Casas fantasmas com até 31 moradores

Quem não está nas ruas, nas praças ou nos abrigos encontra uma outra forma de morar em Boa Vista sem gastar muito: dividindo alugueis com dezenas de outros imigrantes. As casas são simples, mas o que chama atenção mesmo é falta de móveis e o excesso de gente. Há residências com 10, 20 e até mais de 30 moradores.

O G1 visitou uma casa onde 31 imigrantes moram juntos. São 19 homens, 10 mulheres e duas crianças se dividindo entre seis cômodos quase vazios de móveis. Eles dividem o aluguel, a alimentação e o espaço para dormir, mas carecem de itens básicos como uma geladeira e camas para tirarem os colchões do chão.

Casas desprovidas de mobília e eletrodomésticos, mas cheias de gente (Foto: Inaê Brandão/G1 RR)

"Na Venezuela vivíamos eu, minha mulher e filho. Aqui moramos com outras 28 pessoas. É difícil, mas precisamos viver assim para fazer as coisas, pagar aluguel, as contas e ainda comer", diz Carlo Yendez, de 36 anos, que está há três meses no Brasil com a esposa de 22 anos e o filho de 11 meses.

Criminalidade e xenofobia

A tensão entre venezuelanos e brasileiros cresce conforme a imigração se expande. Nas redes sociais, é fácil achar mensagens xenofóbicas e de ódio aos imigrantes.

Um dos fatores que colabora para o acirramento da xenofobia é o registro de crimes envolvendo vítimas ou infratores venezuelanos. Já houve furtos em mercados e comércios, roubo de armas e também homicídio - a vítima era uma travesti venezuelana.

Os furtos, que são notavelmente os mais recorrentes, estão intimamente relacionados às condições de vida dos venezuelanos em Roraima, afirma Francilene Rodrigues, professora e pesquisadora da UFRR.

"As pessoas estão em situação de extrema vulnerabilidade, e a fome é o principal fator que as leva a cometerem esses crimes. Geralmente, eles roubam comida ou coisas para vender e comprar comida, ou seja, é o que chamamos de crimes de fome ou crimes de pobreza."

No ano passado, três mulheres venezuelanas foram flagradas furtando desodorantes e outros itens de um supermercado. Elas foram presas, mas depois liberadas. O juiz que as soltou foi claro na sentença: "a questão deve ser vista principalmente sob a ótica dos princípios humanitários".

A reportagem solicitou à Secretaria de Segurança Pública de Roraima o número de crimes e de prisões envolvendo venezuelanos nos últimos três anos no estado, mas não obteve retorno.

Outro fator de tensão em meio à onda de xenofobia é a prostituição. Desde o começo da imigração venezuelana para Roraima houve um aumento no número de mulheres oferecendo programas na periferia da cidade.

Em uma área específica no bairro Caimbé, dezenas de mulheres se prostituem à luz do dia, o que incomoda moradores e provoca constantes ações policiais. Há relatos de exploração e violência contra as imigrantes.

Algumas são obrigadas a oferecer sexo em troca de comida. Vulneráveis, elas têm se tornado alvos de crimes cruéis. Há dois meses, uma delas foi estuprada e esfaqueada e, segundo a polícia, só escapou com vida porque se fingiu de morta.

Essas venezuelanas, segundo Francilene Rodrigues, são um dos principais alvos de xenofobia, bem como aquelas que ficam nas ruas com os filhos, às vezes até bebês de colo, pedindo emprego ou comida.

"Hoje, quando se fala nas mulheres venezuelanas, as referências são perjorativas", frisa a professora, afirmando que a situação provoca uma reflexão sobre como encaramos o novo. "A imigração venezuelana está mostrando quem realmente somos e está mostrando que muitas pessoas não conseguem se colocar no lugar do outro."

Governos cobram ajuda

O intenso fluxo de venezuelanos em Roraima está preocupando autoridades locais. Os governos de Roraima e a prefeitura de Boa Vista alegam que não têm como arcar com o crescimento desordenado do número de imigrantes e cobram respostas do governo federal.

A imigração é sentida em vários setores. Em 2016, o estado decretou emergência na Saúde, alegando que unidades de saúde de Boa Vista e de Pacaraima estavam sobrecarregadas com os atendimentos a venezuelanos.

Um ano depois, no final de 2017, o governo voltou a decretar emergência em razão da crise imigratória, mas dessa vez o alerta também foi para as secretarias de Saúde, Trabalho e Bem Estar Social, Justiça e Cidadania e Comunicação.

Devido a essa sobrecarga, como as autoridades definem, município e estado propõem que o governo federal faça um plano de interiorização dos imigrantes para que eles sejam levados a outras partes do país onde existam mais oportunidades de emprego - em Boa Vista, o que prevalece é o funcionalismo público.

Seguindo em frente

Enquanto estado, município e governo federal tentam encontrar soluções para o intenso fluxo venezuelano, imigrantes continuam cruzando diariamente a fronteira do Brasil.

Em comum, os milhares de estrangeiros que chegam a Roraima mostram que a fuga da fome não é só uma travessia por comida. É também uma luta para manter viva a esperança de ter um futuro melhor, deixando para trás as lembranças da fome e do desespero.

Uma gíria venezuelana comumente dita pelos imigrantes parece resumir bem o que eles sonham para o futuro: "echar para lante", que significa "seguir em frente". Assim como a professora universitária Lisbeth Canelón, de 29 anos, eles querem a chance de progredir e se reinventar.

"Quero retomar minha vida, aprender português, ensinar espanhol, trocar experiências. Preciso de trabalho, mas no Brasil eu quero ser parte da solução."

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